Geralmente, é uma mulher que escreve. Desta vez, é o filho!
Para quem
acompanha os debates gerais relacionados a gênero e raça no Brasil sabe que a solidão da
mulher negra é um dos componentes centrais da formação e
funcionamento da nossa sociedade. Infelizmente não tem o destaque ou tratamento
merecido porque se fala em "mães solteiras" (ou mães sozinhas, já que mãe não é estado
civil) sem dizer que são negras ou em mulheres negras sem dizer que
são/estão sozinhas.
Minha mãe,
Iris, infelizmente não fugiu à regra e ainda não conheceu o
amor do começo ao fim. Companheiros, familiares e um sem número de
circunstâncias socialmente legitimadas a açoitaram em seus desejos e escolhas,
interrompendo o seu amar.
Assim como o
dela, conheço vários casos dentro e fora da família e é gritante como o ciclo
de abandono se repete: a mulher - compulsoriamente mãe - é deixada por um homem
(negro ou branco)
- opcionalmente pai -
e arca com o custo emocional do abandono do parceiro, processo que pode ser
marcado por violências; fica marcada com o estigma social de “mãe solteira”;
tem sua renda comprometida com a criação dos filhos, pois o pai não paga
pensão; etc.
Mais tarde,
surge também, como consequência, a dificuldade em iniciar novos
relacionamentos: por causa do tempo despendido com o cuidado dos filhos ou da
recusa dos pretendentes em “criar filhos de outro”. A mulher negra abandonada
com filhos carrega ainda a marca de ser preterida por outros homens,
reafirmando sua solidão.
O que
reproduzo acima não é fruto da minha experiência porque não sou uma mulher
negra. Sou contrário a assumir um lugar de fala que não é meu porque é
carregado por uma opressão que não recai diretamente sobre mim e, por isso, não
sou capaz de apontar saídas para superá-la. Sempre que trato de assuntos do
feminismo cuido em mostrar que aprendi de mulheres, por isso não vou dedicar
mais tempo neste ponto.
Essas e
outras experiências compartilhadas de mulheres negras são melhor descritas por
elas próprias em sites como o Blogueiras
Negras e o Geledés.
Também na escuta de um filho às palavras de sua mãe que nunca pode ou
considerou escrever sobre o assunto. Nessas narrativas - e estudos! - há mais
legitimidade do que o que reproduzo aqui neste texto.
A HERANÇA DO
ABANDONO PARA OS FILHOS ABANDONADOS
A segunda
herança que quero tratar diz respeito aos filhos. Somos quatro filhos de três
relacionamentos: o primeiro gerou a mais velha, Tamires; o segundo, eu e minha
irmã Talita; o terceiro, a mais nova, Vitória. Apesar disso, nunca nos tratamos
como meio-irmãos, mas sim como filhos da Iris - e temos muito orgulho
disso!
Na semana
passada, contudo, eu fui a São Paulo para uma audiência de conciliação com a
minha irmã Talita. Fomos apenas nós dois por causa desse problema em comum:
nosso pai. Não que as outras também não tenham problemas com seus respectivos,
mas a Talita e eu compartilhamos do mesmo protocolo judicial. Mesmo ausentes,
eles nos dividem.
Essa
audiência foi o capítulo final do processo que meu pai move há pouco mais de um
ano pedindo retificação da nossa pensão alimentícia - aliás, da dívida
acumulada, já que ele não cumpria com o acordo. No histórico de pagamentos, por
exemplo, houve várias vezes que ele pagava metade do valor devido a cada três
meses, caso contrário seria preso. Em outras palavras, nunca foi uma renda com
a qual pudéssemos contar e, ainda por cima, ele nos processa porque era demais
comprometer o próprio dinheiro com... seus filhos.
Não quero me
ater ao conjunto de sentimentos que tive ao longo do processo, mas às cobranças
que tive durante toda minha vida por não ter pai: o interrogatório quando eu
dizia que não vivia com ele - incluindo um suposto divórcio de um suposto
casamento; a ausência do nome dele no meu RG durante alguns anos; a cara de dódas
pessoas achando que eu seria fracassado, frustrado, mau-caráter ou bandido; uma
suposta falta de “referência masculina”, de “amor de pai”. Além do discurso
estigmatizado disparado contra minha mãe: a que tem “filho de cada pai”, que
“gosta de ter filho”, entre outras atrocidades que recaem exclusivamente sobre
a mulher.
Eu gostaria
muito que isso pertencesse ao meu passado, mas sei que sempre que surgir o tema família terei
que contar uma longa história ao invés de dizer alguns nomes. Essa segunda
herança, que recai sobre os filhos, por vezes já me fez calar ou fugir do
assunto, não porque achava que houvesse algo errado com a minha família, mas
por essas exaustivas cobranças sociais ligadas a um "modelo
tradicional" e fantasioso.
Nosso modelo
de família não foi escolhido por ela nem por nós, mas somos punidos por ele ser
como é. O resultado é a produção de um fantasma, alguém que tivesse de estar
ali e não está. Fantasma que faz as pessoas sentirem falta do meu pai por mim,
mesmo eu nunca tendo sentido nada em relação a ele. Já a pensão, que é meu
direito, para arcar com os custos da minha criação, eu senti bastante e nunca
me perguntaram a respeito.
Não sei se
acontece o mesmo a ele e aos demais, embora eu suspeite que numa sociedade
patriarcal, permissiva com a irresponsabilidade masculina, não sofram nenhum
tipo de assédio sobre onde ou como estão seus filhos. Pra eles, braços abertos;
pra ela, punhos fechados; pra nós, tapinhas nos ombros. Nenhuma pensão.
A HERANÇA DO ESTADO RACISTA PARA AS FAMÍLIAS NEGRAS
Este domingo é Dia dos Pais. Foi coincidência que minha vontade de escrever a
respeito encontrou uma data tão oportuna e não pude deixar passar. E acho que
seria desperdício não falar sobre o Estado brasileiro e a herança racista que
deixa para as famílias negras.
A história desse país criou o abismo que separa as mulheres negras do amor e
seus filhos do que significa essa tão louvada família. Talvez por isso a pensão
alimentícia seja um terreno de disputa entre mãe, pai, filhos e Estado, onde
este último só administra o prejuízo que ainda não foi capaz de consertar.
Nos corredores da Vara de Família são muitos rostos, masculinos e femininos,
mais jovens ou mais velhos, mas a cor da pele é quase sempre a mesma. Como isso
pode ser tão bem aceito? Antes e depois das audiências aquelas pessoas, assim
como eu e minhas irmãs, são assediadas devido à ausência de seus pais e o
melhor que o Estado pode fazer é ser árbitro da disputa?
Em um país com uma quantidade esmagadora de famílias como a minha, achar que se
cumpre justiça em estipular valores e penas é, antes de tudo, uma tomada de
posição para corroborar esse ciclo de falência.
Mantenho o exemplo do meu pai, que tem outra companheira e outros filhos. Qual
o sentido em prendê-lo e deixar desamparada mais uma família negra? Certamente
não é esse meu desejo quando reivindico meu direito, não quero vingança;
principalmente porque não gostaria que meus meio-irmãos passassem pelas mesmas
dificuldades que passei.
Nesse ponto reside a questão: a pensão pra mim hoje não exerce a mesma
influência que já teve um dia, mas é justo que eu receba. Ao mesmo tempo, ela
não repara as inúmeras privações que já passei.
É notável que se trata de uma situação difícil para todos e ceder não é
alternativa para ninguém. E diante desse impasse, o Estado faz meia-justiça,
isenta-se de sua responsabilidade de reparar e usa o aparato judiciário para
que as partes apertem as mãos.
O racismo estrutural do país significa também essa forma de operar do Estado e
sua Justiça, assegurando as heranças de cada um: para o Brasil de cima, são
bens e bônus, para o de baixo, danos e ônus. Por isso um dia como hoje, assim
como tanta coisa por essas terras, é Dia de Poucos.
Portanto, não espero justiça da Justiça, pois não resolve e, por isso mesmo,
ela está disposta a me dar. Quero a reparação histórica necessária para
(re)constituir experiências negras de família sem abandono, solidão, estigma,
divisão ou mágoa; sem fantasmas.
(A saber, pela segunda vez meu pai faltou à audiência de conciliação e a ordem
de prisão já foi expedida).